Falando em Caçapava, na XXII Feira do Livro, falei sobre Moacyr Scliar, assim: “Remexi em minha desordenada biblioteca e peguei um livro de Moacyr Scliar, (que escreveu mais de setenta), justamente o que tem este título, e como linha de apoio, “Uma trajetória literária”: “O texto, ou: a vida”. Entendi aquele achado como uma mensagem de quem estava entrando em sua última madrugada de vida escreveu sobre si e sua carreira de escritor num livro em que propunha a sua própria escolha.Pelo estado de saúde a que ficou reduzido depois da operação do dia 15 de janeiro, pelas informações que nos chegavam, sabia-se que, infelizmente, Moacyr estava fazendo a “escolha final”: já que não poderia voltar aos seus textos, estava deixando a vida.
“A vela – escreveu ele – que, na infância, arde no bolo de aniversário é a mesma que enfeita o caixão. A vida passa; escrevendo, ou fazendo medicina, ou formando uma família, ou militando politicamente, ou trabalhando, ou bebendo – a vida passa. Chega um momento em que tudo que esperamos das velinhas é que elas iluminem com sua tênue luz, o nosso passado e nos permitam extrair alguma conclusão de nossas trajetórias. O que pretendemos com o ato de escrever? Cumprir uma missão? Obter algum tipo de conforto? Ganhar a vida, simplesmente? Conquistar a glória?”
Este é um dos significativos trechos de sua “vertiginosa autobiografia”, como foi qualificado pela editora Bertrand Brasil em 2006 o livro que agora eu tinha em mãos.E em qualquer página que o pequeno volume de 272 páginas fosse aberto, saltaria uma lição de Moacyr.Deparando com a notícia do seu falecimento neste amanhecer de 27 de fevereiro, ao acaso comecei a mergulhar na releitura de trechos do seu trabalho em que, responde à própria pergunta:“O que foi que aprendi?
“Aprendi, em primeiro lugar, que escritores escrevem. Escrever não significa necessariamente pegar uma caneta e rabiscar no papel ou digitar no computador, há uma fase de elaboração mental em que o texto começa a tomar forma em nossa cabeça. Mas em algum momento ele deve se tornar visível ou legível. (…) Da página o texto nos fala. Até mesmo a mancha gráfica na página sugere coisas.”A modéstia do Moacyr está em muitos pontos, mas, está bem claramente situada na página 257: “Escrevemos para o leitor.” E segue adiante:“Temos limitações. Nem todos podemos ser Shakespeare (1564-1616) ou Fernando Pessoa (1888-1935) ou Drummond. Mas podemos melhorar, podemos aprender. E o processo de aprendizado, em literatura, envolve ler outros escritores e até imitá-los.”
Mas, segue Moacyr Scliar (1937-2011), “voltando à pergunta básica (“Isto que escrevi está escrito da melhor forma que eu poderia escrever?”). Não é apenas um questionamento, é uma exigência. Escrever é reescrever. Vou escrever isto de novo: escrever é reescrever. E mais uma vez, para não ficarem dúvidas, escrever é reescrever.”
Não se pense que o consagrado escritor, membro da Academia Brasileira de Letras, navegou sempre num oceano tranquilo. E mais uma vez me valho do seu precioso documento que mexeu comigo e que mexerá com todos os que relembrarem, lendo-o:
“… me fez sentir o que é ser esmagado pela opressão. Médico recém-formado, fui fazer um concurso público. Já estava sentado no grande salão em que se realizaria a prova, junto com centenas de colegas, quando entrou um homem com um papelzinho na mão. Leu, em voz alta, o meu nome e o nome de outro médico, e pediu que o acompanhássemos. No corredor, disse que não poderíamos fazer o concurso. Temerariamente resolvi perguntar a razão daquilo. E a resposta dele, até hoje, quarenta anos passados, ressoa em meus ouvidos:- Eu não sei e se fosse tu não perguntava.” Assim foram aqueles tempos e Scliar bem os descreve e recorda que foi o período em que nasceu e cresceu na América Latina o movimento do “Realismo Mágico”, já que não se conseguia derrubar as ditaduras que se enfileiravam no Brasil, no Uruguai, na Argentina, no Chile, no Paraguai.O autor de “O centauro no jardim”, “O exército de um homem só”, de tantos livros que ultrapassam as sete dezenas, contos, crônicas e ações de boa vontade e ajuda aos outros, deixou de existir sobre a Terra.
Mas, como bem diz ele sobre a luta com as palavras, no final do seu depoimento: “Para isso servem as palavras, para estabelecer laços entre as pessoas – e para criar beleza. Pelo que a elas devemos ser eternamente gratos.”
Conselho Estadual de Cultura - CEC/RS
Rua 7 de Setembro, 1020 · 2° andar - Memorial do RS
Centro Histórico · CEP - 90010-191 Porto Alegre · RS
(51) 3225 8490
conselho@conselhodeculturars.com.br